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Segredo

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Olho para a mesma medalha mil vezes por dia, girando-a na mão e absorvendo cada entalhe cuidadoso no material dourado. Primeiro lugar em atletismo. Um grande desperdício.

E começo a pensar no que restou comigo. Um pedaço de metal redondo e brilhante que constata a perfeita forma física de uma pessoa saudável. Irônico. Um pequeno prêmio que muitos se matam para conseguir. Não gosto desse termo. Não gosto da morte.

De que serviu a George ser um atleta que os médicos elogiam se um nanosegundo de descuido e acaso acabou com tudo? As pessoas ficam dizendo “Quem poderia imaginar?”, “Pobre Julia, sozinha no mundo outra vez…”.

Mas não estou sozinha mais. Eu tenho uma nova família adotiva. Não que faça muita diferença. Eles não entendem. Eles podem me fazer chá com biscoitos e falar delicadamente e fazer carinho na minha cabeça, mas estão a quilômetros de onde estou. Eu não consigo ser resgatada, e tudo o que me faz companhia é a porcaria da medalha. Eu não a desprezo. Gosto de me lembrar da vitalidade dele quando corria, da busca por aquela pequena coisa que agora é tudo o que me liga a ele.

Na maior parte do dia, depois que fui aceita em uma nova família, eu ficava no quarto, mas comecei a procurar outros esconderijos quando aquelas cortinas rosas e limpas começaram a gritar que sou a intrusa no lar de alguém.

O bairro é limpo e bonitinho demais, e preciso andar muito para me distanciar daquele ambiente artificial. Minhas pernas me levam à nossa antiga rua, e eu sempre me arrependo, mas quando chego não consigo sair. Eu me afundo em algum lugar, em um banco, embaixo de uma árvore no parque abandonado, nos fundos da velha serraria onde costumávamos ajudar o Bob, e suporto o meu pesar. Quase sempre não muito bem, mas ali posso gritar e uma caneca quente não vai ser levada a mim por mãos macias e trêmulas porque minha nova família não sabe o que fazer. Eles tentam, mas a verdade é que não preciso que ninguém tente. Não é isso que vai me fazer sentir melhor.

Tenho certeza de que também não é ficar vagando por aqui, mas não sei mais para onde ir. E pelo menos aqui eu posso vê-la: a pequena criatura que odeio mais do que tudo, porque ela o tirou de mim. Ele trocou a vida dele por a daquele serzinho miserável.

O cachorro olha para mim com aquela cara de abandonado, e eu não sinto a menor pena. Sei que não estou numa situação muito melhor do que a dele, embora eu possa dizer que agora sou bem de vida. Mas espero que vê-lo sofrer possa me aliviar um pouco. Não é o que acontece.

A visão das costelas magras do vira-lata não me satisfaz nenhum desejo de vingança. Nem sei se tenho um desejo de vingança. Não quero matar esse cachorro. Sei que ele não tem culpa, ele apenas é estúpido por estar no meio da rua no momento em que um carro passou. A vida dele não é mais valiosa do que a de George, mas George aparentemente não pensava assim quando se jogou para salvá-lo.

É por isso que decido dividir meu pão com ele, pouco depois de ter passado na padaria e afundado na parede externa da serraria inutilizada, onde o cachorro costuma circular. Eu jogo os pedaços para a criatura, e ele come como se não visse alimento há dias, o que é provável. Percebo que não posso deixar o cachorro morrer, devo isso a George.

Então vou para lá todos os dias, e, enquanto choro, alimento o cachorro, que parece cada vez mais ávido. Estou o deixando mal acostumado, mas não me importo. Não me importo com nada.

Um dia decido mudar de posto, não aguento mais ficar ali. Movo-me cinquenta metros e me alojo sob uma árvore. O cachorro me descobre rapidamente. Eu não quero a companhia dele, mas ele se deita mesmo assim. Ele deve ser cheio de doenças, tento não me aproximar, mas então lembro que George já o levou ao veterinário. Só não o adotou porque eu não deixei. Além dos custos, eu tinha medo de ele gostar mais desse cachorro do que de mim. Isso nunca aconteceu e sei, lá no fundo, que não aconteceria. O coração de George era grande o bastante para caber mais de um ser vivo. Talvez o meu é que seja pequeno demais…

Conforme o tempo passa, vou fazendo esforço para deixar mais gente entrar no espaço empedrado dentro do meu peito. Deixo minha nova família me adular um pouco e tento ser simpática com eles. Quando não consigo mais, volto à minha árvore, onde o cachorro já está me esperando, salivando com expectativa. Dou a comida a ele e me sento. Pela primeira vez, ele lambe minha mão. Digo que não há mais nada para ele ali, mas ele continua me umedecendo com sua língua áspera, e percebo que seus olhos escuros me olham de uma forma animada. Seus olhos podem não ser mais tristes, porque tudo o que ele precisa é de comida, mas não eu, então não retribuo sua animação. Afasto-me e me encolho contra o tronco, e ele parece decepcionado.

Nos outros dias, ele parece mais apático, quase de volta ao seu antigo estado de abandono, e percebo que sou insensível ao pensar que ele não precisa de mais do que uma barriga cheia. Nunca entendi os cachorros, mas percebo que este sente. Ele sente falta de George também. Eu sei que George cuidava desse cachorro, mesmo sem levá-lo para casa. Ele dava conta de proteger ambos, eu e o cachorro, e fazer com que não nos encontrássemos, porque eu não queria um bicho em casa. Talvez um gato, um hamster, um peixe. Eu nunca quis um cachorro, aquele cachorro.

E percebo que ele devia ter um nome. George com certeza o batizou. Ele era o segredo que meu tutor mantinha de mim. Um dentre muitos. Decido chamar o bicho de Segredo, porque ele também se tornou o meu. Quando minha nova mãe pergunta aonde eu vou quando sumo, não digo a verdade. Ela está pagando um psicólogo, e se eu contar que volto ao lugar onde morava, ela vai achar que estou regredindo e não me deixará mais sair.

Segredo e eu fazemos companhia silenciosa um ao outro, e às vezes conto a ele alguns momentos que passei com George. Falo sem parar sobre George, mais do que falo para o psicólogo, porque ao passo em que este balança a cabeça e faz perguntas prontas, Segredo apenas me escuta e me olha com aqueles olhos que viam George. Ele reconhece o nome, ele também sente falta. Ele me entende.

Em certo momento minhas mãos deslizam sozinhas para acariciar o pelo grosso do cachorro, e a resposta dele a isso me faz chorar. Ele chega perto e descansa a cabeça no meu colo. Ele não se incomoda com as minhas lágrimas, não me faz parar, ele me acompanha no meu pesar. Ele entende agora que depois da comida não vem uma brincadeira, que estou devastada demais para isso. Ele apenas fica lá comigo, o tempo que eu precisar ficar, e quando vou embora, ele choraminga. Eu prometo que vou voltar, e um dia, quando saio, deixo com ele a medalha. Ela é grande demais para ele engolir e ruim demais para mastigar, então ele só a carrega com os dentes para seu cantinho, onde deposita as porcarias que acha.

No dia seguinte, ele me recebe com a medalha de atletismo na boca e a põe a meus pés. Está me devolvendo. Digo a ele que é um presente, que não preciso mais dela. Acaricio sua cabeça e, ao invés de deixar a medalha em seu ninho, jogo-a a distância. Ele corre para pegar. Nunca o vi correndo. Ele traz de volta, e no mesmo instante percebo que George costumava brincar com ele assim. Dou meu primeiro sorriso em meses.

Passamos mais tempo brincando, e a energia da conexão me faz querer andar. Caminho pela área arborizada, e Segredo vem atrás. Visito os pontos em que costumava ir com George, e Segredo vai marcando território. Estamos nos apossando desses lugares. Percebo que ganhei um companheiro. Já é impossível fazê-lo me largar. Quando vou embora, é um martírio. Tenho pena de deixá-lo sozinho na noite, mas não posso levá-lo comigo. Com certeza minha mãe adotiva e minhas novas irmãs não vão gostar de um vira-lata em casa.

Em um súbito regresso, tenho um ataque de raiva e brigo com o cachorro por ter estado naquela maldita pista no meio da noite. Sei que ele não tem culpa. Sei que George não teve culpa. Porque agora, eu mesma sei que teria feito o mesmo que ele. Teria tentado tirar esse cachorro estúpido da frente do carro.

Segredo fica ofendido, e sente que precisa ir embora. Ele sai com o rabo entre as pernas. Seria muito fácil apenas deixá-lo ali e tentar seguir com minha nova vida, mas agora não há como separar minha nova vida daquilo que construí com esse vira-lata irritante. Ele faz mais parte dos meus dias do que minha segunda família adotiva. Somos ambos órfãos, deixados por quem amávamos. Só nos resta um ao outro.

Solto um muxoxo e corro atrás dele. Pego-o por trás. Ele está sujo e tenho medo de pulgas, mas o carrego até me cansar e mandar que ele me siga. Ele não precisa que eu peça de novo. Cruzamos ruas, bairros, avenidas. Paramos em frente a um pet-shop. Peço que façam a ele tudo o que precisa para ficar decente. É uma pequena fortuna, mas pago. Agora eu posso pagar.

Quando saímos da loja, mal reconheço o animal diante de mim, e admito que ele é mais do que um bicho que salvei das ruas. Ele é meu companheiro. Aquele que esteve comigo quando ninguém mais esteve, que me tratou como ninguém conseguiu, e sem dizer uma única palavra. Vejo que aqueles olhos cansados me enxergam como nenhuma pessoa além de George me enxergava. Ele foi persistente. Não desistiu de mim, mesmo quando eu já havia desistido.

Agora ele é meu novo melhor amigo. Minha família adotiva o aceitou também, nós dois como um pacote, na tentativa desesperada de tentar me fazer feliz. Com ele por perto, posso suportar os dias na minha nova realidade, porque levo comigo um pedacinho de George. Valorizo mais do que nunca o ato dele, de não deixar esse cachorro morrer. Esse cachorro me ensinou a sorrir de novo e me uniu aos meus novos irmãos. Ele conheceu uma fêmea, e eu conheci o dono da fêmea. Eu amo o dono da fêmea, e os filhotinhos fizeram três crianças felizes. Eu ainda sinto falta de George terrivelmente, mas ao salvar o cachorro que ele amava, salvei a mim mesma. E agora nós compartilhamos isso. Um Segredo.

 Paula Ottoni, 2012